EXPEDIÇÃO MÃO DO DESERTO
UMA PEQUENA VIAGEM DE MOTO E UMA GRANDE EXPERIÊNCIA PARA A VIDA
Uma frase marcou bem a viagem, alguém disse assim: “Sonhou, planejou e executou.” Neste contexto vou me deter um pouco. Durante a fase do sonho sobre a viagem parecia tudo tão distante e por vezes impossível de se realizar dado o tamanho do percurso e todas as prováveis dificuldades de enfrentaríamos. Então passamos ao planejamento do percurso e verificação dos possíveis imprevistos tentando antecipar a estes e minimizar o impacto que teriam sobre a viagem. Foram dias e noites pensando, conversando e escrevendo. De posse de uma preparação que beirava a insanidade de tanto cuidado, colocamos o pé na estrada. A execução propriamente dita foi surpreendente em diversos pontos: povos diferentes e seus costumes gastronômicos, vestuário, língua (dialetos), a paisagem que incendiava a alma de emoção e saudade de casa que foi bem maior do que anteriormente mensurada.
Bem, quero me ater agora as graças que as nossas almas vivenciaram, e, se digo nossas almas é porque depois de conviver um mês diuturnamente com dois amigos, posso ousar falar por eles alguma coisa. A oração vespertina foi constante, a princípio como forma de prevenção aos nossos medos com o encontro com o desconhecido, isso mudou muito a partir do momento que vimos que o Bem caminhava ao nosso lado e muitas das vezes à nossa frente. O que antes era oração de intensos pedidos foi se tornando lentamente em orações de agradecimento e de reconhecimento, percebíamos que éramos ouvidos e que existiam mais pessoas sintonizadas na mesma fé. São tantos os fatos em que percebemos que o céu conspirava a nosso favor que é necessário resumir a uma descrição suscinta sem reduzir a grandiosidade das ações. Toda a viagem ocorreu sem sequer um acidente de percurso, não tivemos qualquer problema com policiais em desvio de sua conduta profissional, a língua não tão diferente servia-nos de oportunidade para brincar e sorrir, o sabor picante e forte do tempero andino causava lembrança da comida caseira de Minas, em suma: nem pneu furou!
Mas, o teor do meu texto é o registro mental que ficou e que pode determinar alguma mudança, para melhor, em meu comportamento. No decorrer da viagem presenciei imagens e fatos que marcaram e possibilitaram extrair bons exemplos. A viagem – para mim – era um muito agradável, afinal realizava um sonho no alto dos meus quase cinquenta anos, mas, para um amigo era um pesar, isso aos 700 quilômetros mais ou menos, era só saudade e o seu desconforto pesaroso era tanto que pensava em desistir da viagem. Após uma conversa sobre a possibilidade e implicações da sua desistência foi que ele se propôs a prosseguir. Daí, abstraí o paralelo entre a viagem e a nossa vida terrena, o enfrentamento necessário às dificuldades próprias do percurso e a decisão de seguir em frente avançando ao encontro de um futuro desconhecido. Este mesmo amigo foi mestre na arte de ensinar que as pessoas que veriam as nossas fotos não precisariam saber do seu desconforto interno e sorria em todas as fotos, disso só dei conta mais tarde quando da nossa chegada e rever os registros fotográficos. Foi impressionante conviver com uma pessoa que sofreu grande parte da viagem e passava uma imagem feliz a quem visse uma fotografia sua, vi o quanto preciso mudar e ser um reflexo de luz mesmo quando em minha vida os momentos forem de tempo nublado ou até mesmo escuridão. Foi também este mestre que após uma crise de ansiedade me mostrou que o curso da vida pode ser alterado, quando propôs que não sofreria mais com a ansiedade própria e para grande surpresa nossa ele mudou de sentimento e passou a curtir a viagem com muito mais habilidade humana e sabor. E a experiência seguia quase que sem condições para eu sorver suas doses diárias de conhecimento e ensinamento.
O controle com a segurança, exagerado em minha parca visão, com os veículos, documentação, alimentação e outros itens fazia de outro amigo um verdadeiro mestre com as situações em que a antecipação aos problemas era vital para o bom desempenho das máquinas e do corpo. Tamanha foi a minha relutância que peguei um resfriado por não observar as suas dicas preciosas. Não apenas pelo resfriado, mas, sobretudo pela importância do simples cuidado voltado a prever o que pode acontecer e agir com olhos voltados para o futuro. Este mestre tem olhos de águia. Nem preciso dizer o quanto retiro de utilidade dessa breve convivência.
Apenas sobre estes amigos mestres poderia escrever laudas e mais laudas, mas, é necessário dizer outras coisas ainda.
A cordilheira e sua beleza esplendorosa, a montanha que eu não sabia se sangrava ou chorava águas límpidas tiveram uma significação especial nesta jornada. A dificuldade de subir, a pouca oferta de ar e os efeitos da altitude somados ao clima gélido me mostraram que muitas vezes as coisas belas da vida também têm um preço alto, se vale à pena pagar eu mesmo é quem devo avaliar. Os povos da montanha que erram por terras improdutivas, que vivem com os recursos mais escassos que vi e mesmo assim fiam e tecem motivos culturais milenares em cores vivas, recebem turistas com fartos sorrisos me inspiram a perceber que meus recursos e minhas possibilidades são amplos e muitas vezes não os vejo desta maneira. Preciso ser mais receptivo e mais alegre.
O povo que renunciou a viver com altas taxas impostas por um governo injusto e se instalou sobre o lago, criando condições próprias de liberdade e de vida contribuíram para que entendesse que posso lutar mais pelos meus ideais ainda que isto custe um pouco do meu conforto e demande muito trabalho e implacável perseverança. Salve comunidade de Uros/ Puno/ Peru!
A dedicação aos mortos, estampada em homenagem à beira da estrada que corta o deserto de Atacama, veio como que uma faca a retalhar a lembrança dos meus entes queridos que partiram desta vida e me fez perceber o quanto de tempo tenho oferecido a esta dedicação e que se lembrar dos meus antepassados é inteirar com todos os habitantes da terra. Uma placa na fronteira do Brasil/ Argentina/ Paraguai de autoria de Baha’u’llah dizia o seguinte: “A terra é um só país, e a humanidade os seus cidadãos”, contribuiu com o contexto dos meus pensamentos. Reflito mais ainda sobre a brevidade de minha própria vida e a irmandade da terra.
Quanto a grande diversidade de clima enfrentada na viagem, sair de 40 e poucos graus dentro da roupa de proteção para temperaturas negativas, nas mesmas condições; deslocar de paisagens de floresta imensas para áreas de deserto absoluto sem qualquer vegetação; vislumbrar igarapés isolados na mata amazônica para em breve tempo estar em locais onde a montanha de areia e pedra forma uma beleza natural. Todo esse contraste foi preponderante para eu mais uma vez fazer um paralelo entre a viagem de poucos dias e a jornada de muitos anos aqui na terra. A lua que nascia cheia no horizonte de Atacama auxiliou ainda outra comparação: É a mesma terra que possui estas diferenças, como em mim também, percebo áreas desérticas em minha alma e outras inundadas de boa água, por vezes quente em algumas emoções e n’outras bem frio. Considero importante à terra a diversidade, em minha alma tenho dúvida.
Antes da viagem parecia um longo percurso com muitos dias, agora depois de realizada o sentimento é outro. Viajamos pouco e aprendi muito, não esperava tanto queria apenas andar de moto e conhecer outros países. Foi necessário ir longe para entender que a vida me oferece mestres a cada dia eu é que preciso estar atento às suas manifestações. Seja uma pessoa, um clima ou qualquer outro mestre que se apresente, sou eu quem deve se curvar aos ensinamentos que gratuitamente são ministrados em situações cotidianas.
Ao Mestre dos mestres deixo expresso meu agradecimento não apenas pela oportunidade da viagem e suas inúmeras graças, mas, pela possibilidade de aprender um pouquinho mais, por ter aberto a minha mente para perceber muito mais do que escrevi, pela capacidade de reconhecer que acima de meus mestres terrenos está a mente do Aberto, Aquele que sobre todos reina soberanamente e sutilmente age em meu favor. Obrigado Senhor Jesus!
Bem, não seria este texto uma oração, senão seria bem maior, fui apenas movido de gratidão neste momento de produção. O que eu quero é deixar claro que viajar de moto é muito bom e que no motociclismo muito se aprende!
José Raimundo de Assunção - um integrante